terça-feira, 12 de abril de 2011

Judiciário e política: o caso do “ficha limpa”

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação da lei da “ficha limpa” para as eleições de 2010 escancarou o que alguns juízes, promotores e advogados ainda insistem em negar: a relação indissociável entre direito e política. Para entender como funciona a política brasileira, não basta observar governos, partidos, assembléias ou eleições. O judiciário também é uma peça fundamental. A Ciência Política tem dedicado crescente atenção à chamada “judicialização da política”. Simplificando, trata-se de fenômenos que incluem tanto o uso de práticas jurídicas para se fazer política, quanto a promoção de ações judiciais para contestar decisões. Nisso se examina desde ações relativas à distribuição de medicamentos, à instalação de CPIs e procedimentos do legislativo, chegando a casos sobre a validade das leis. Essa última discussão é travada especialmente no Supremo Tribunal Federal. Além disso, quando a lei em questão trata sobre eleições, partidos, representantes, governos, etc, qualquer decisão terá efeitos e motivação necessariamente políticos.

O caso da “ficha limpa” é ilustrativo para se analisar as motivações e efeitos políticos das decisões judiciais. Qualquer que fosse a posição do Supremo, o resultado final das eleições passadas seria distinto. Uns candidatos e não outros passariam a ocupar cargos eletivos. Caso a lei valesse para 2010, não apenas muitos candidatos estariam inelegíveis, mas também o voto de uma parcela da população seria virtualmente desconsiderado. Porém, o STF decidiu que ela será aplicada apenas nas próximas eleições, o que permite o ingresso de políticos de moralidade e comportamento duvidosos, muitos já condenados judicialmente por órgãos colegiados, por exemplo.

Quanto aos efeitos, a importância política da decisão é evidente. Suas implicações ultrapassam esta ou aquela eleição e conferem um sentido à expressão do voto popular. Embora a maioria da opinião pública tenha louvado a lei da “ficha limpa”, entendida como uma tentativa de promover a ética na política, ela, na verdade, também traduz uma vontade de restringir a manifestação popular, transferindo a responsabilidade da escolha. Por meio dela, confirma-se o ditado de que “brasileiro não sabe votar”, reconhecendo-se duas categorias de eleitores, aqueles cujo voto é válido e aqueles cujo voto será descartado por lei. Essa vontade de tutelar o voto que cria dois tipos de eleitores tem muito pouco de democrática, contradizendo a retórica daqueles que defenderam a lei por conta dos “anseios da população”, mas que, ao fim e ao cabo, preferem não falar em povo e desconfiam da opinião popular.

Por outro lado, apesar de alguns comentaristas sustentarem que a decisão tenha sido “técnica”, é bom lembrar que as questões “técnicas” do Supremo são, na maioria das vezes, temas essencialmente políticos. O argumento “jurídico” também é político. O propósito do STF existir é defender a Constituição. E ela também traduz ideais liberais, como a proteção aos direitos individuais, incluindo a livre escolha de representantes e o direito de se candidatar. Por isso as leis que mudam o funcionamento das eleições devem ser editadas um ano antes do pleito. A intenção é impedir que maiorias momentâneas e apaixonadas modifiquem o processo eleitoral pouco antes dele acontecer. O receio do Supremo foi de que a aplicação da lei do “ficha limpa” funcionasse como um precedente que colocasse em risco essa segurança jurídica liberal e democrática, permitindo violações ao direito das minorias e do indivíduo (a menor minoria). Nessa perspectiva, a defesa da Constituição também é uma tarefa conservadora. Mas, aqui, a decisão do “ficha limpa” carrega uma sutileza. Embora pareça se contrapor a uma iniciativa de lei popular e que pretende contribuir para “moralizar” a política, a decisão também não deixa de ser democrática, pois acaba por aceitar o voto de uma parcela da população que seria verdadeiramente descartado; uma parcela de votantes que, curiosamente, é maior do que aquela que deu seu apoio assinando o projeto.

Ao fim, para além da relação entre direito e política que essa decisão indica, é possível tirar uma última lição do episódio. O que aconteceu com a lei "ficha limpa" deve ter um efeito pedagógico, alertando-nos sobre a pobreza de nosso espírito democrático e a falsidade das soluções fáceis. Mais do que criar impedimentos legais, é preciso derrotar os "fichas sujas" no voto. Para isso, é preciso dar condições para que a população possa decidir com base em critérios razoáveis; não lhe negando o direito ao voto, mas a capacitando para o exercício da decisão política que busque o bem público e a melhoria de suas comunidades.

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Publicado no jornal "Folha Espumosense" em 09/04/2011.

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